DR. AMADOR VARELLA LORENZO (1917/2004), FORMADO EM 1942 PELA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, FOI UM DOS PRIMEIROS ESPECIALISTAS EM ANESTESIOLOGIA NO BRASIL. PROFESSOR DE FARMACOLOGIA NA USP, PUBLICOU DIVERSOS TRABALHOS ACADÊMICOS. COAUTOR DO LIVRO “CIÊNCIAS BÁSICAS E ANESTEOSIOLOGIA”, TRADUZIU “ANESTESIA EM PEDIATRIA”, DOS AUTORES ALEMÃES W. DICK E F. M. AHNEFELD. 12 de outubro de 2011
Revisado em 26 de setembro de 2018
A anestesia, como a conhecemos hoje, é uma aquisição recente na história da humanidade. Sabe-se que, na Antiguidade, eram realizados alguns tipos de cirurgia e prova disso são os instrumentos cirúrgicos egípcios em exposição nos museus. Portanto, as civilizações antigas deviam conhecer fórmulas para driblar a dor e operar as pessoas. Relatos provenientes da Grécia Antiga indicam que Hipócrates utilizava a esponja soporífera embebida em substâncias sedativas e analgésicas extraídas de plantas e que o médico Dioscórides descobriu os efeitos anestésicos da mandrágora, um tubérculo muito parecido com a batata. Já os chineses se valiam dos conhecimentos de acupuntura e os assírios comprimiam a carótida, para impedir que o sangue chegasse ao cérebro.
Gelo ou neve para congelar a região a ser operada, embriagar o paciente, hipnose foram outros recursos usados para aliviar a dor no passado. Quando de nada adiantavam, as cirurgias eram realizadas a frio, com os doentes imobilizados à força.
Esse panorama mudou, e mudou muito. Hoje, a anestesia é um procedimento médico de altíssima segurança que promove analgesia completa enquanto o paciente é operado.
PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS
Drauzio – Antigamente, como conseguiam operar uma pessoa sem anestesiá-la completamente?
Amador Varella Lorenzo– Eles usavam drogas que, hoje, corresponderiam à morfina. Se bem que o conceito antigo de operação era diferente do atual. Ninguém fazia uma gastrectomia, isto é, uma cirurgia de estômago, por exemplo. Em geral, eram amputações e eles quase sempre encontravam uma forma de dopar o doente. Se não conseguiam, operavam a frio mesmo.
O surpreendente é que essa conduta não está tão distante no tempo assim. No fim da Primeira Guerra Mundial, depois que os alemães deixaram de ter disponíveis as drogas com que poderiam sedar os pacientes, as amputações eram feitas a frio.
Diante de tantas restrições, era importante a velocidade com que as cirurgias eram realizadas. Em poucos minutos, amputava-se uma perna ou cuidava-se de um ferimento grave. Quando comecei a trabalhar com anestesia, na década de 1940, os cirurgiões diziam com vaidade: “Eu opero em pouquíssimo tempo”.
Drauzio – Há relatos de que as amputações eram feitas em pouco mais de um minuto. Mesmo assim, como a pessoa suportava a dor sem anestesia?
Amador Varella Lorenzo – Era terrível! A pessoa era amarrada para não se mexer durante a cirurgia que deveria ser extremamente rápida.
MORFINA
Drauzio – As pessoas não entravam em choque por causa da dor?
Amador Varella Lorenzo – Entravam em choque, sim, e muitas morriam antes de serem operadas. Há registros de que, durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados feridos na linha de frente, que entravam em choque por causa dos ferimentos de hemorragia, recebiam morfina para amenizar a dor. Como essa droga é contraindicada para pacientes em choque, alguns já morriam ali mesmo, antes de serem encaminhados para atendimento cirúrgico nos hospitais de campanha .
Drauzio – A morfina representou um grande avanço para a analgesia e é usada desde o começo do século 19.
Amador Varella Lorenzo – Representou um grande avanço e continua sendo usada até hoje, pois não apareceu nada melhor do que a morfina para substituí-la. Apesar de os alemães terem desenvolvido a dolantina, que é ótima, a morfina continua insubstituível. Isso me permite dizer que, no campo da analgesia, a medicina ainda está atrasada.
GASES ANESTÉSICOS
Drauzio – Embora a morfina permita reduzir ou tirar a dor, não é um analgésico suficiente para permitir o ato cirúrgico.
Amador Varella Lorenzo – Durante algum tempo, além da morfina, usava-se também álcool, clorofórmio e éter.
Drauzio – O senhor chegou a usar clorofórmio e éter?
Amador Varella Lorenzo – Clorofórmio, não; mas cheguei a usar éter na década de 1940. Embora seja ótimo analgésico, o éter tem a desvantagem de provocar vômitos no pós-operatório e os pacientes desidratam.
Drauzio – Como era administrado o éter aos pacientes?
Amador Varella Lorenzo – Por volta de 1940, a influência dos franceses era grande na medicina. Eles criaram um aparelho rudimentar chamado ombredane que, na verdade, baseava-se num erro de fisiologia. Os pacientes respiravam dentro de uma bolsa e junto com o anestésico inspiravam o gás carbônico que eliminavam na expiração. Como o corpo consome oxigênio e esse gás não era fornecido durante a operação, a pessoa recebia uma mistura pobre em oxigênio e rica em gás carbônico – o que era prejudicial -, ficava toxemiada e dormia durante a cirurgia.
Drauzio – Que outros anestésicos foram usados para a pessoa não sentir dor durante a cirurgia?
Amador Varella Lorenzo – Depois, passou-se a usar uma mistura de clorofórmio, éter e cloreto de etila (a mesma substância do lança-perfume, só que sem o perfume e purificado), que fazia o paciente dormir depressa, embora também apresentasse uma desvantagem. Como essas três substâncias são líquidos voláteis, a anestesia começava com a pessoa respirando a mistura dos gases evaporados. No entanto, se a concentração fosse muito forte, a sensação era de falta de ar, de asfixia, o que justificava o medo que as pessoas tinham da anestesia.
Drauzio – Esse medo tinha razão de ser, porque algumas pessoas morriam mesmo durante a anestesia.
Amador Varella Lorenzo – Morriam também porque havia desconhecimento da mecânica anestésica. Quando comecei a trabalhar na Santa Casa de São Paulo, por exemplo, anestesia não era uma especialidade dentro da medicina. Eram os médicos mais novos que recebiam o encargo de anestesiar os pacientes. Aqueles que estavam começando na profissão, recém-formados ou ainda estudantes, que queriam estudar cirurgia, eram obrigados a desempenhar a função de anestesistas.
Drauzio – Quem ensinava esses médicos jovens que eram obrigados a dar anestesia?
Amador Varella Lorenzo – Ninguém. A única recomendação que se ouvia dos mais velhos é que existiam dois tipos de choque: o branco e o azul. O branco era a parada cardíaca; o azul, uma deficiência respiratória que tinha cura. Naquele tempo, a parada cardíaca era fatal, porque não se conheciam as técnicas de ressuscitação que dominamos hoje. Não se sabia também que o clorofórmio causa parada cardíaca, nem se tinha atinado com os prejuízos da deficiência de oxigênio e do excesso de gás carbônico associados ao efeito dos anestésicos.
Drauzio – Na verdade, parece óbvio que respirar dentro da máscara clorofórmio, éter, cloreto de etila e o gás carbônico que eliminavam, resultava em falta de oxigênio para os pacientes. Ninguém tinha pensado nisso?
Amador Varella Lorenzo – Ninguém havia se dado conta de que o risco aumentava com a deficiência de oxigênio e o excesso de gás carbônico somados ao efeito dos anestésicos. O procedimento baseava-se no que preconizava a escola francesa, ou seja, que o gás carbônico do próprio organismo é um estimulante da respiração.
Drauzio – Não resistir à anestesia era uma causa de morte aceita naquela época. O senhor viu muita gente morrer durante a anestesia nessa fase?
Amador Varella Lorenzo – Não, porque tanto a anestesia quanto a cirurgia foram especialidades que evoluíram bastante. De qualquer modo, o pavor das pessoas que iam ser operadas era muito grande. Temiam morrer durante o procedimento cirúrgico ou no pós-operatório, pois não havia antibióticos para combater as infecções.
MUDANÇA DE RUMO
Drauzio – É possível identificar o que modificou o destino da anestesia?
Amador Varella Lorenzo – Foram várias coisas. No que se refere à anestesia geral, enquanto acompanhávamos a fase francesa do ombredane, os ingleses já tinham desenvolvido outro aparelho e usavam protóxido de nitrogênio, um gás anestésico. Essa técnica desenvolvida pelos ingleses também apresentava um inconveniente. Para conseguir anestesiar o doente durante a cirurgia, a concentração de protóxido era muito alta e a de oxigênio não atingia o mínimo de 21% necessário. Por isso, o paciente ficava azulado. No entanto, se o grau de cianose não ultrapassasse certo ponto, não representava risco de vida e permitia realizar o ato cirúrgico.
Drauzio – O protóxido de nitrogênio é também conhecido como gás hilariante, porque as pessoas riem quando estão sob seu efeito.
Amador Varella Lorenzo – De fato, isso acontece. No Hospital das Clínicas, a sala de operação era equipada com um aparelhamento muito bom e – coisa de anestesista – eu mesmo experimentei esse gás para sentir como agia. Minha vontade foi de sorrir, efeito nada semelhante, porém, com o riso exagerado que se via nos filmes de cinema.
Drauzio – O protóxido de nitrogênio representou um avanço na anestesia?
Amador Varella Lorenzo – Foi um avanço. Ele é bom para promover analgesia, provocar sono mais duradouro e de melhor qualidade e pode ser usado em pequenas intervenções.
Drauzio – O doente dorme depressa quando recebe o protóxido de nitrogênio?
Amador Varella Lorenzo – Não dorme depressa. Por isso, a técnica era ir aumentando a concentração para a respiração ficar mais suave e, depois, ir reduzindo-a gradativamente.
Drauzio – Quais foram os avanços que se seguiram ao protóxido de nitrogênio?
Amador Varella Lorenzo – Apareceram gases com propriedades anestésicas como o ciclopropano de ação eficaz, mas perigoso por causa do risco de comprometimento cardíaco. Por isso, precisava ser usado com cuidado, mantendo alto o nível de oxigenação do paciente.
Outro inconveniente é que o ciclopropano é um gás explosivo. Certa vez, eu estava fazendo uma anestesia no Hospital das Clínicas de São Paulo e, na sala de operação ao lado, ocorreu uma explosão. Uma faísca que saiu do bisturi elétrico utilizado pelo cirurgião ou foi provocada por eletricidade estática fez explodir o cano de borracha que levava o gás até o paciente. Se a explosão não tivesse acontecido do lado de fora do aparelho, teria ocorrido dentro do pulmão em virtude da mistura de gases nele contida.
Drauzio – Na sua opinião, quando houve a grande virada nos rumos da anestesia?
Amador Varella Lorenzo – As drogas administradas na veia representaram um grande avanço para a anestesia. Hoje, o número de anestésicos endovenosos é muito grande e a indução da anestesia é agradável porque começa pela veia. Tão logo se introduz o anestésico, o doente dorme um sono bom e, quando volta a si, apenas se lembra de que tomou uma injeção na veia e foi operado.
No nosso meio, as coisas começarem a mudar quando, no Hospital das Clínicas de São Paulo, formou-se um grupo de anestesistas que se dedicava exclusivamente a essa especialidade. Vários fizeram estágios nos Estados Unidos, pois o eixo dos avanços da medicina já havia se deslocado da Europa para a América do Norte.
Drauzio – Que cuidados se fazem necessários durante a anestesia?
Amador Varella Lorenzo – É preciso cuidar das vias respiratórias dos pacientes sob anestesia geral. Quando a musculatura relaxa, há risco de obstrução das vias aéreas por perda do tônus da musculatura que suporta a língua. Para evitá-la, são introduzidas cânulas orais que mantêm a língua afastada da parede posterior da traqueia ou passa-se um tubo através da boca até a traqueia para permitir a circulação da mistura anestésica. Para fazer isso, é preciso que seja total o relaxamento não só da boca e da língua, mas também da glote e da laringe. Os relaxantes musculares foram medicamentos que ajudaram muito nesse sentido.
PROCEDIMENTO SEGURO
Drauzio – O senhor acha que a anestesia tornou-se um procedimento de altíssima segurança?
Amador Varella Lorenzo – Hoje podemos contar com número enorme de anestésicos por via respiratória. São líquidos que se transformam em gases e são misturados com oxigênio nos aparelhos de anestesia. Simultaneamente, esses aparelhos registram o eletrocardiograma, a concentração de oxigênio no sangue, a pulsação, a pressão arterial e a dos gases anestésicos que se dirigem aos pulmões. Acusam também a ocorrência de qualquer alteração que o paciente possa manifestar durante o ato cirúrgico.
Logo, não há o que temer. A segurança é total, mas – ressalva que vale para todas as profissões – depende da competência e da responsabilidade do profissional. Há pouco tempo, na Inglaterra, foram divulgados casos de doentes que morreram porque o anestesista saiu da sala para atender um telefonema. Foram poucos, mas aconteceram.
Fonte: https://drauziovarella.uol.com.br/entrevistas-2/historia-da-anestesia/